04/01/2010

Por uma outra nova igreja do Restelo

In Público (2/1/2010)

«Chego à varanda e há qualquer coisa que se mexe no meu estômago. Esta náusea começou há dias quando a cruz de ferro que havia no terreno em frente desapareceu e deu lugar a um buraco ruidoso onde se escavam as fundações da Igreja de S. Frankenstein Xavier. A nova igreja do Restelo merece este nome: foi claramente concebida a partir dos cadáveres de meia dúzia de arquitecturas diferentes. Já lhe chamaram, com igual acerto, a Barca do Inferno.

Não creio que estes nomes desagradem ao autor: este já manifestou apreço por projectos "no limiar entre o kitch e o piroso" e a sua inspiração, no caso deste, no conceito surrealista do "cadáver esquisito". E mais lhe assume a intenção do manifesto: um insulto estrepitoso ao modernismo, àquela gente que "só sabe fazer peixe podre" - a mesma, devo recordar, que concebeu o plano urbanístico que ainda faz do Restelo o lugar aprazível de que desfrutam os moradores e os paroquianos em particular.

Esta jactância, aliás vulgar disfarce para mais vulgares fraquezas, transformou a construção de uma igreja de paróquia, de outra forma pacífica e até festiva, num acto de absurda violência contra o rosto urbano do lugar cujos estragos se reflectem já em toda a volta: no embaraço da Igreja, na vergonha das autoridades municipais, na consternação dos moradores, no alarme dos munícipes.

Dir-se-á que este é o preço da liberdade do artista, talvez esquecendo que a arquitectura é, de várias formas, menos arte que poder. E que este inclui, para começar, o de se impor ao espectador e lhe condicionar a fruição do espaço que habita. Podemos fechar um livro, sair a meio de um espectáculo ou evitar um museu. Mas para escapar à contemplação diária desta coisa, terei de mudar de casa ou ficar cego.

Posso adivinhar a intolerância dos promotores deste projecto para várias acções artísticas que assim lhes batessem à porta ou entrassem pela janela. É que este terreno comum inclui uma fronteira que tem de ser negociada com respeito e delicadeza e ainda com o saber que a arte também não dispensa.

Ninguém tem o direito de o oferecer, à revelia dos que habitam, ao primeiro Homer Simpson que calhe reclamá-lo. Foi para evitar abusos destes

que se inventou o escrutínio público, o concurso, o júri, a disciplina do urbanismo e o seu pelouro municipal. E se continua a investir nos princípios da civilidade.

Talvez por isso ainda espero que os actores desta opereta lhe consigam engendrar um final menos bufão. Que a Igreja se arrependa de infligir a todos a despesa da vaidade que lhe impingiram - e que o faça ainda antes que comece a eternidade; que os responsáveis camarários acabem de sacudir do capote a água que usam para lavar as mãos - e assumam com lealdade a tarefa que lhes foi confiada; que os moradores se determinem a exigir o seu direito à qualidade do lugar - mesmo os que, mais indiferentes, só venham a ler o esbulho no valor das suas casas; e que os lisboetas continuem a insistir que as anedotas se devem manter confinadas aos parques de diversões - pelo bem da higiene e da boa digestão das coisas feitas em público. Seríamos todos melhor servidos por uma outra nova igreja do Restelo.

António Paixão, Lisboa»

1 comentário:

Vasco Nobre disse...

É pena é este Arquitecto ser de facto um pouco foleiro, porque a atitude de ir contra o modernismo e derivados acho que deveria ser para generalizar.
Apenas os meus dois centimos